"O escritor é uma das criaturas mais neuróticas que existem: ele não sabe viver ao vivo, ele vive através de reflexos, espelhos, imagens, palavras. O não-real, o não-palpável. Você me dizia "que diferença entre você e um livro seu". Eu não sou o que escrevo ou sim, mas de muitos jeitos. Alguns estranhos."

Caio Fernando Abreu

sexta-feira, 22 de julho de 2011

"As coisas sempre prestes a serem apanhadas. E você eternamente prestes a apanhá-las. Como uma sina. Sempre prestes."






"- Você sabe que de alguma maneira a coisa esteve ali, bem próxima. Que você podia tê-la tocado. Você podia tê-la apanhado. No ar, que nem uma fruta. Aí volta o soco. E sem entender, você então pára e pergunta alguma coisa assim: mas de quem foi o erro?
O outro fez um movimento como se fosse falar, mas ele o deteve.- Sei, sei. Você vai perguntar: mas houve um erro? Bem, não sei se a palavra exata é essa, erro. Mas estava ali, tão completamente ali, você me entende?No segundo seguinte, você ia tocá-la, você ia tê-la. Era tão. Tão imediata. Tão agora. Tão já. E não era. Meu Deus, não era. Foi você que errou? Foi você que não soube fazer o movimento correto? O movimento perfeito, tinha que ser um movimento perfeito. Talvez tenha demonstrado demasiada ansiedade, eu penso. E a coisa se assustou, então. Como se fosse uma fruta madura, à espera de ser colhida. É assim que vejo ela, às vezes. Como uma coisa parada, à espera de ser colhida por alguém que é exatamente você. Não aconteceria com outro. Depois, quando ela foge, penso que não, que não era uma fruta. Que era um bicho, um bichinho desses ariscos. Coelho, borboleta. Um rato. É preciso cuidado com o arisco, senão ele foge. É preciso aprender a se movimentar dentro do silêncio e do tempo. Cada movimento em direção a ele é tão absolutamente lento que o tempo fica meio abolido. Não há tempo. Um bicho arisco vive dentro de uma espécie de eternidade. Duma ilusão de eternidade. Onde ele pode ficar parado para sempre, mastigando o eterno. Para não assustá-lo, para tê-lo dentro dos seus dedos quando eles finalmente se fecharem, você também precisa estar dentro dessa ilusão do eterno.
 (...) - O erro? Eu dizia, pois é, o erro. Eu penso, se o erro não foi de dentro, mas de fora? Se o erro não foi seu, mas da coisa? Se foi ela quem não soube estar pronta? Que não captou, que não conseguiu captar essa hora exata, perfeita, de estar pronta. Porque assim como o movimento de apanhar deve ser perfeito, deve ser perfeita também a falta de movimento, a aparente falta de movimento do que se deixa apanhar. Você me entende? Eu penso também, e se houve alguma interferência no. No em-volta-dos-dois, no ar. No astral, eu penso também. Uma coisa de Deus, do invisível, do mistério, que embora pareça errada ao não te deixar apanhar o prometido, no entanto está absolutamente certa. Porque é assim que é. Naturalmente. As coisas sempre prestes a serem apanhadas. E você eternamente prestes a apanhá-las. Como uma sina. Sempre prestes.
(...) - Não gosto quando a gente fica falando assim no que não foi, no que poderia ter sido. God! Não aos sábados, principalmente à noite. Não hoje, por favor, hoje não dá, eu tenho. Eu tenho uma sensação meio de amargura, de fracasso. Você me entende? Como se tivesse a obrigação de ter sido, ou tentado ser, outra pessoa.
(...)Qualquer coisa que ficar falando no que a gente podia ter sido não é bom. Dá uma sensação de... 
 ...- fracasso 
(...) - Aí resolvi que nesta noite de inverno em que vamos virar a noite de sábado pelo avesso da noite de julho, ninguém vai falar no que podia ter sido e não foi."


Caio Fernando Abreu
Foto: Comstock